Escapo. Por muito pouco. Incrédula, mas me salvo. Subo no ônibus trêmula, com os olhos cheios de lágrimas, vermelha, disposta a uma vergonhosa entrega, desistência absoluta; assumida. Queria era chorar ali na rua mesmo, sentar na calçada e ceder a um só sentimento, queria gritar:
- Não aguento. Não é para mim.
  Ou, então, decretar um silêncio sem limites. Nunca mais uma voz sequer, fazer um voto de mudez completa, um protesto que duraria o resto da vida. Mas a adulta logo me contém, não me acalma, não me ampara, nem consolo dá, mas me coloca no ônibus e me manda cumprir com o horário. A adulta sempre surge assim, quando ameaço um rompimento, uma explosão solitária, então ela chega,  manda, sentencia, na sua ditadura de sensatez, me coloca no lugar, naquele que ela acha que eu devo estar. Evito o soluço, subo quase sem fôlego no ônibus, dou meus olhos de pavor ao motorista, que nem repara, atravesso a catraca e ofereço um suspiro ao cobrador. Ambos me devolvem as prendas.

  Há bancos vazios, mas não me sento, preciso de ar, quero tomar todo o vento no rosto, tentar entender o que a mulher no carro pensou ao acelerar, quando eu ainda atravessava a faixa. Assustada, ainda olhei-a, busquei nela a compreensão:
 - Moça, que isso? Eu estou na faixa. Não precisa ser assim.
  Mas ela não me deu mais nada, além da dureza no rosto, acelerou e teve raiva de alguém que nunca viu, mas que também é ela.

  No vazio de qualquer entendimento, com o coração voltando às batidas que são dele, eu recebo todo o vento, quem sabe assim ele dissipe essa mágoa minha, esse ressentimento de estar vivendo nestes dias de guerras cotidianas, de confusões sem ânimo de esclarecimento, de pequenas intolerâncias e tão raras gentilezas. Fecho os olhos e não choro, o vento alivia o coração. Mas, então, com cuidado, um quase medo de perder a paz de novo, eu reabro os olhos e  vejo a primeira beleza no ônibus: a estampa oriental no vidro, atrás do banco do condutor. Cada motorista na cidade tem um tecido próprio,  que serve de amparo para a luminosidade natural e, talvez, para certa defesa da sua intimidade no trabalho tão público, sujeito a olhares, julgamentos, conselhos e interrupções. Algumas guaritas são de tecidos discretos, de uma cor só, outras com estampas de mar, selva, bichos, a maioria delas traz os escudos dos times de futebol deles, demarcam suas singularidades e tornam visíveis um pouco do que esses homens gostam e pelo qual desejam ser reconhecidos. Mas a deste ônibus é inacreditavelmente delicada, é linda, um painel sublime de cerejeiras japonesas, que balançam ao vento. Que não anunciam time, sonho, nem proteção, é só uma delicadeza instalada no ônibus urbano, espantando o inverno de almas desoladas de uma manhã de quarta-feira. As flores balançavam ao vento, um hanami estendido a minha frente, um sossego que eu encontrei sem chegar a lugar nenhum.

  Mas não bastou. Poderia ter sido este o sinal de que a minha loucura passaria de novo e eu cumpriria horário, sem choro, sem desespero na calçada. Mas então, o segundo milagre, ao lado da estampa oriental, se mostrou para mim. O velho do primeiro banco, que quando entrei nem pude ver,  começa uma conversa com um jovem de óculos redondos e tênis vermelhos, que acaba de subir.  O jovem não tem vinte anos e o homem já passa dos oitenta. Conversam, ultrapassando a dificuldade de audição do mais velho e falta de tato do mais jovem, parecem uma dupla atrapalhada, mas cheia de sentido, porque querem se entender a qualquer custo. É bonita a paciência do jovem  e é comovente a vontade de comunicação do homem mais velho. Então o homem usa do recurso que pode, vai recorrer às imagens. Tira do paletó um amontoado de fotografias e as oferece ao rapaz. Não estão em um álbum ou protegidas por um saco plástico. São fotografias antigas, algumas em preto e branco, são as memórias de família que ele traz junto ao peito em um paletó gasto e as coloca nas mãos inexperientes, sem restrições, de um desconhecido.

  O jovem parece não ter nenhuma habilidade com o material, são de um outro tempo documentos como aquele. Quem, hoje, sai com uma pilha de fotografias no bolso?A cada desconhecido estampado no papel, o jovem interroga a familiaridade do homem com a personagem e ele, satisfeito em ser visto, ouvido, ter sua existência reconhecida por alguém, vira a foto e aponta uma legenda (tem data, nomes) e ele só complementa: - Minha filha caçula. Meu neto. Minha esposa. Meus companheiros do exército.
  As fotos são de um tempo muito distante para o jovem, ele é curioso, se mostra interessado e isso é parece ser tudo o que o velho busca. Parecem grandes amigos ao lado de uma cerejeira japonesa. As mãos de um outro século sobre o par de luvas de lã do jovem, me emocionam. Não resisto e choro. Choro mesmo, desobedecendo a adulta, me esquivando dos limites, resistindo a cada uma das ordens dela; sem ignorar o instinto, sem reservas com o sentimento líquido.

  Vão passando cada foto, pequenos recortes de uma vida que o jovem não alcança, mas não deixa de tentar, de perguntar ou de só admirar. Um jovem de óculos redondos e tênis vermelhos, salvando um homem do esquecimento. Um velho com uma pilha desordenada de fotos, resgatando o rapaz da superficialidade dos tempos difíceis de afeto. E ambos me curando do medo da insensibilidade, me afastando da ditadura adulta que só diz "tá tudo bem", sem nem um abraço. O ponto do homem chega, o cobrador dá o sinal, o velho recolhe as fotos, o motorista para e aguarda que ele desça, o homem se levanta, desce e se despede do amigo com uma saudação bonita. Seguimos e o braço dele ainda está erguido, como alguém que se despede de um navio. Despedida demorada, longa.

  O ônibus já está longe, mas o jovem ainda olha para trás, procurando o amigo recente no porto.  Ambos estão marcados pela disponibilidade, pela gentileza que se permitiram oferecer e receber. Nas mãos de ambos também está o destino da humanidade inteira.

  O vento que levou meus primeiros pensamentos, os devolve: queria acreditar que a mulher não me viu na faixa. Mas viu. Eu passei pelo olhos furiosos dela e sei. Não escapei do atropelamento, só o carro não me alcançou, mas me curei do ferimento mais doloroso no aconchego do ônibus. O velho e as fotos, o jovem e os olhos de trazerem vida a qualquer lembrança amarelecida pelo tempo, o painel japonês do motorista. O mundo é bom e ruim num mesmo grau, é cruel e generoso em espaços muito próximos, é dor e redenção com minutos de distância, é susto e encantamento num impulso de entrada no transporte. Eu desisto e permaneço entre a arrancada de uma motorista intolerante e uma lembrança marcada com caneta atrás da foto. Desço do ônibus e volto para o desamparo de ser estrangeira na calçada,  num mundo em que eu me reconheço cada vez mais nas travessias.

  A despedida dos dois amigos, na partida do navio, preenche minha manhã de beleza, alimenta de esperança  a tarde gelada e avança comigo pelo começo da noite. Dos olhos de raiva da mulher, eu já começo a esquecer. Há tanto milagre a ser visto, há tantas fotografias a serem feitas e compartilhadas genuinamente, assim, de uma mão para outra. Porque eles estavam dispostos, se deram, porque uma vez ao ano as cerejeiras dão flores e vale toda a tristeza do mundo esperar para ver o colorido delas.

  Se não está tudo bem, não sento. Deixo o vento bater no rosto, saio de mim para observar outras pessoas, ver beleza na condução delicada dos homens e chorar de emoção pelas surpresas cotidianas, sem a censura da adulta que não ampara, mas mente a todo o tempo que "está tudo bem". A liberdade do choro, do desconsolo e da descoberta de um milagre é conquista da resistência. Lutar...como é mesmo a frase? Sem perder a ternura na próxima esquina. Prefiro o medo à insensibilidade. Dou meus dias a um velho com fotografias no bolso,  a um jovem de óculos redondos e a um painel no tecido barato do ônibus, mas não os entrego aos olhos de raiva, às arrancadas intolerantes, tampouco à sobriedade seca da adulta. Chorei e ainda choro, porque me salvaram o dia esses desconhecidos de além mar. 

Amada Machado é mineira de juiz de Fora, escritora do cotidiano, em prosa, e leitora incansável das pequenas coisas do mundo, em poesia. Escreve há sete anos no blog “Pareço Louca”, do qual originou o seu primeiro livro de crônicas e contos “Centopeia de mil pés errados”, pela editora Confraria do Vento e um segundo livro que sairá pela editora feminista “Quintal”, com o lançamento no próximo mês;  além de ter proporcionado grandes encontros e histórias que nunca terminam.
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